28.10.04

Liberdade é Escravidão?

Lá vai um textinho escrito para o site da Revista Zero em algum tempo de 2003.... espero opiniões...

"Liberdade é Escravidão?"

Por Danilo Gaiotto
http://www.revistazero.com.br/sonosite.php?i=450

"Toda autoridade é igualmente má" - Oscar Wilde

Nada se cria, tudo se copia. É nessa lama que chafurda grande parte da produção musical independente brasileira atual. O mito da revolução independente toma feições grotescas quando esse cenário é analisado de modo atento. Não se pretende aqui jogar terra sobre o crescente e necessário movimento de desvinculação da produção artística das grandes empresas para os pequenos selos ou gravadoras caseiras, entretanto é contribuir para hipocrisia não destacar certos pontos de grave contradição, que acabam por comprometer o propalado "do it yourself".

Aconchegantes são as palavras desse cenário, que insiste em bradar os perigos proporcionados pelo temido controle das gravadoras, supostamente acolhendo em seus braços aqueles que preferem expressar a "arte pela arte", livre das peias do mercado e dos ditames hierarquizados.

O que se nota entre os "sem-gravadora" é a constituição de um poder a parte, um poder que finge não ser poder, aquilo popularmente conhecido como "panela" ou "patota" (fenômeno brilhantemente ironizado por Cobain: "our little group has always been and always will until the end"). O esquema é basicamente uma pirâmide, onde os que estão no topo (por motivos de conveniência) ditam regras acerca do que é "legal" e daquilo que não é. A faixa exatamente abaixo se incumbe de divulgar, através de seus meios (aqui entram os críticos e formadores de opinião), aquilo que foi estabelecido como "legal". Por fim, a base da pirâmide ovaciona o que agora é legal e passa a repudiar o que ficou "babaca" (coitados Weezer e Belle & Sebastian). Evidentemente esse esquema da "síndrome da panela" é espontâneo, e não mecânico como pela descrição possa parecer.

Até porque não existe um momento em que os do topo viram e falam: "Bom... isso é legal" e ponto. O que se dá, de fato, é uma transposição - atrasada - do qué é (ou melhor, era) "cool" no cenário alternativo americano e europeu. A influência cultural estrangeira assume posição meramente contemplativa e pelega. A sedução pelos padrões de fora acaba por fazer tornar as costas para o que é próprio da nossa cultura, fazendo-nos viver uma manifestação da realidade que não é a nossa. E não há nenhum Policarpo Quaresma falando aqui. Basta notar a postura de certos grupelhos desse cenário que, como costuma-se dizer, se acham mais londrinos do que os moradores de Londres.

Esse bovarismo cultural demonstra a total subtração do senso de originalidade e da coragem de criar espontaneamente. Não se pode admitir que nossa expressão artística seja mero retoque mal resolvido do que é feito lá fora. Os movimentos musicais que tiveram êxito em nosso país foram aqueles que souberam dosar na medida correta os ingredientes da influência e da originalidade (e individualidade). Pode-se discordar musicalmente do samba, da bossa nova, da tropicália, do rock anos 80 e do mangue-beat, mas não há como negar que a sacada desses movimentos foi manipular os elementos de cultura estrangeira como meros instrumentos para a concretização de sua arte. A apropriação não era um fim em si, ela apenas visava o aspecto da intertextualidade, não contentando-se em realizar meras colagens vazias. Infelizmente, esse não é o caso de nossa cena independente.

É patente a existência de um "mainstream" mascarado nesse meio. Dessa forma, a produção artística acaba sendo moldada segundo essas regras sazonais do que é o "legal", fazendo a manifestação tornar-se não obra de artistas, mas sim de meros replicantes insossos e oportunistas. Citando Oscar Wilde, em "A Alma do Homem Sob o Socialismo", "a obra de arte inovadora é bela por ser o que a Arte nunca foi; portanto, avaliá-la segundo critérios do passado é avaliá-la segundo critérios de cuja recusa depende sua verdadeira perfeição. Somente poderá apreciar uma obra de arte aquele temperamento que é suscetível de receber impressões novas e belas, que lhe chegam graças aos meios e as condições próprias de expressão do imaginário".

Você pode se arriscar a dizer: "Mas a banda pode fugir desses moldes e fazer o som que lhe dá prazer etc.". E pode mesmo. Porém, se a intenção da banda é atingir vários segmentos e locais do país, através de distribuição de discos e participação em festivais, ela, irrefutavelmente, tem que se associar a um selo. E é aqui que começa a operar a máxima do legal.

Não há, sinceramente, nenhuma pretensão de colocar todas as bandas e selos independentes nesse balaio de moldadores/moldados de estilo. Quem está realmente preocupado com a manifestação da arte e sua divulgação sabe que está fazendo seu trabalho de maneira adequada, sendo desnecessárias palavras de alento e menções honrosas.

Acontece que a maior parte opera e cria com base nessa lógica do "legal" e nessa síndrome da "patota". O esquema funciona de cima para baixo, ou seja, muitos selos atraem para si somente as bandas que consideram dentro do conceito de "legal", e também de baixo para cima, com as bandas direcionando sua criação para que se adeqüe ao filtro estabelecido. Em suma, a banda entra no esquema se seu estilo (tanto musical como visual) for coincidente com o conceito de "legal".

Há de se convir que enquanto essa coincidência for acidental e meramente ao acaso, não há qualquer objeção a fazer. Se num dado momento a arte sinceramente emanada pela banda passa a ser valorizada como antes não era e ela se torna a "bola da vez", o que ocorre é simplesmente uma adesão espontânea e natural, não havendo que se recriminar uma banda que teve seu sempre sincero trabalho valorizado pela mudança dos conceitos.

Agora, quando a produção da música passa a ser direcionada e moldada com vistas a atingir a simpatia daqueles que estabeleceram o "legal", unicamente para "entrar na cena", temos um comportamento execrável. Os padrões já estão dispostos, fazendo com que a arte musical se reduza a uma mera busca pela adequação, onde todos parecem estar tocando a mesma a música (quantas bandas não "parecem" com alguma coisa?) e dizendo a mesma coisa, ou seja, nada.

"Liberdade é Escravidão". Será que Orwell estava certo?

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