17.2.05

Bons tempos aqueles da boemia

De volta das férias, o tema para a primeira coluna do ano não poderia ser diferente. Imortalizada na voz de Nelson Gonçalves, a boemia certamente não é apenas uma maneira de vida, é um patrimônio histórico e cultural da música brasileira.

Vivida intensamente nas décadas de 30 a 50, foi a responsável por um sem-número de canções ora chorosas e doloridas ora alegres e contemplativas, que retratavam um mundo de sofrimentos amorosos e festas animadas regadas à cerveja e violão pelas madrugadas dos botecos. É dessa “filosofia de conversa de bar” que saíram grandes mestres e grandes momentos da nossa música popular, que, apesar de completamente esquecidos hoje em dia, merecem sempre ser reverenciados.

Entre os precursores, vale a pena citar:

- Noel Rosa, com seus versos inteligentes e sempre ácidos (“Seu garçom faça o favor de me trazer depressa/ uma boa média que não seja requentada/ um pão bem quente com manteiga a beça/ um guardanapo e um copo d´água bem gelada” – Conversa de Botequim);

- Cartola, com seu inconfundível lirismo sentimental e doído (“Procuro afogar no álcool a sua lembrança/ mas noto que é ridícula a minha vingança/ Vou seguir os conselhos de amigos/ E garanto que não beberei nunca mais/ E com o tempo esta imensa saudade/ Que sinto se esvai” – Peito Vazio);

- Ataulfo Alves, talvez o mais injustiçado de todos, consagrado na voz de Orlando Silva, o “Cantor das Multidões” (“Eu na verdade/ Indiretamente sou culpado/ Da tua infelicidade/ Mas se eu for condenado/ A tua consciência/ Será meu advogado” – Errei, Erramos);

- Lupicínio Rodrigues, considerado o pai da “dor-de-cotovelo” ( “Quem há de dizer / Que quem você está vendo/ Naquela mesa bebendo / É o meu querido amor/ Repare bem que toda vez que ela fala/ Ilumina mais a sala / Do que a luz do refletor/ O cabaret se inflama quando ela dança/ E com a mesma esperança/ Todos lhe põem o olhar/ E eu, o dono/ Aqui no meu abandono/ Espero, louco de sono/ O cabaret terminar” – Quem há de dizer);

Todos tiveram seu apogeu entre as décadas de 30 e 40, mas, invariavelmente, restrito a guetos de apreciadores e praticantes desse estilo de vida. Tempos depois, surge nova leva de boêmios, resgatando os princípios de seus mestres, sempre levando suas canções numa mistura de samba, bolero e tango, enfatizando, ao mesmo tempo, a alegria e a dor de cotovelo inerentes à boemia. Entre os maiores, dá pra destacar:

- Paulo Vanzolini, fantástico sambista e letrista de São Paulo, apreciador da noite e grande estudioso de biologia (o museu de Zootecnia da USP leva o nome dele) – (“Eu não bebo pra esquecer/ bebo pra lembrar/ Bebo e cambaleio e tenho/ você ao meu lado/ É o meu instante de felicidade/ Vou andando na neblina das ruas/ Conversando com você/ Cantigas da perdida felicidade/ Seu perfume se mistura ao cheiro bom da madrugada/ Sua mão nem pesa em meus braços/ Mas seu contato é doce, doce/ E o rumor dos seus passos é música, música pura” - Valsa das Três da Manhã);

- Adoniran Barbosa, de todos, o maior símbolo da boemia paulista, dispensa apresentações (“Com a corda Mi do meu cavaquinho/ fiz uma aliança pra ela/ prova de carinho/ Quantas serenatas eu tive que perder/ pois meu cavaquinho já não pode mais gemer/ Quanto sacrifício eu tive que fazer/ para dar a prova pra ela/ do meu bem querer” – Prova de Carinho)

- Dolores Duran, com suas interpretações dignas de lágrimas, uma das maiores influências de Cazuza (“Eu desconfio/ Que o nosso caso esta na hora de acabar/ Há um adeus em cada gesto/ Em cada olhar/ O que não temos é coragem de falar/ Nós já tivemos a nossa fase/ de carinho apaixonado/ De fazer versos/ de viver sempre abraçados/ Naquela base do só vou se você for” – Fim de caso).

- Nelson Gonçalves, que apesar de não ser compositor, emprestou sua voz magnífica à composições que viraram clássicos (“Tango, meu tango triste/ Tantas vezes aqui nesta calçada/ Choramos juntos/ meu tango triste/ Como rivais disputando a bem amada/ Tango, meu tango triste/ fora de moda, desprezado como eu/ Meu companheiro de boemia/ a noite sobre ti também desceu” – Último Tango).

Não há como negar a beleza dessas letras, a maestria dos arranjos (dá uma procurada na Internet que dá pra ouvir todas elas) e o clima intenso e verdadeiro que cada uma delas passa. Todos esse mestres ainda serviram de influência para outros, como Benito de Paula (“Você me olha desse jeito/ meus direito e defeitos querem se modificar/ Meu pensamento se transforma/ me transporto simplesmente/ penso coisa diferente/ Vejo em você meu amor”), Zeca Pagodinho e Cazuza, isso sem citar toda a geração bossa-nova e diveros outros grandes adeptos da tradição boêmia.

Uma pena que uma fase desse porte da música nacional seja esquecida e pouco reverenciada, talvez por falta de informações, talvez por falta de discos no mercado, talvez por falta de interesse das pessoas em conhecerem nossas raízes. Valeria muito a pena se isso fosse revivida, se tivéssemos uma nova geração de boêmios apaixonados que cantam o amor, a dor e a alegria, num puta clima de amizade e conversa de bar, onde o que importa é cantar, tocar, conversar e tomar uma cerveja.

Por outro lado, para aqueles que se julgam dignos do espírito da boemia, vale o tapa na cara de Paulo Vanzolini, em “Falso Boêmio”:
Talvez então não dissesse/ que bebe pra ver se esquece/ que a madrugada o inspira/ Você fazendo o que faz/ Só mostra que quer cartaz/ Que é um boêmio de mentira/ Porque não é boemia/ Trocar noite pelo dia/ Beber com ar de tristeza/ Ser boêmio é ser diferente/ É viver liricamente/ Padecendo com grandeza

Nenhum comentário: